Heranças
Eu nunca me importei muito com os riscos dos meus investimentos. Pagava as contas, o que sobrava, eu investia. Dinheiro faz dinheiro. Minha mulher não fazia o mesmo, o destino das economias dela era sempre a poupança. No entanto, há alguns meses a oportunidade de uma vida apareceu e eu pedi a ela um dinheiro emprestado para investir.
No início, Júlia tocava no assunto todos os dias. Qual o nome do fundo? É um imobiliário, né? Depois, ela passou a acompanhar semanalmente os rendimentos. Há duas semanas o fundo só cai. Vou perder muito dinheiro assim. Por fim, silêncio. Insistia que falasse e ela me dava respostas curtas. Não é nada. Continuei a insistir. Você escolheu um péssimo fundo. Eu não devia ter confiado em alguém que não tem cuidado nem com o próprio dinheiro. Saiu batendo a porta. Dormimos em camas separadas naquela noite e nas seguintes. Comecei a considerar como poderia pagá-la o mais rápido possível.
— A gente pode se mudar para a sua casa — disse enquanto tomávamos café da manhã juntos pela primeira vez em semanas.
— Não dá — Júlia me respondeu em voz baixa.
— Os inquilinos não estão se mudando de lá?
— Não posso morar naquela casa de novo. — Deixou meia xícara de café na mesa.
Não precisaríamos mais pagar aluguel e eu a pagaria de volta bem antes do que havia prometido. Na verdade, não sei porque não já morávamos na casa. Continuei a insistir. Quanto mais eu falava sobre a casa, mais ela era a Júlia do início do casamento. Voltamos a dormir na mesma cama, a tomar café da manhã juntos, a sair e a não falar sobre investimentos. Era tudo que eu queria, mas algo parecia não estar certo.
— A imobiliária avisou que os inquilinos já se mudaram. Quero visitar antes que seja alugada — disse depois de uma semana.
— Sérgio, não precisa me pagar. Vamos deixar tudo do jeito que está e não falamos mais nisso.
Qual o problema dela com essa casa? Havia lá segredos de família? Pensando bem, a Ju nunca contava histórias sobre a família, ela sempre desconversava. Quando nos casamos, os pais dela já haviam falecido e ela, herdado a casa misteriosa. Estava alugada e Júlia decidiu que era melhor morar em um apartamento.
Será que ela passou a infância toda na casa? E não sente saudades? Por quanto tempo ela e os pais moraram na casa enigmática? Será que é assombrada pelo pai e a mãe?
— Quantos anos você tinha quando se mudou da casa, Ju? — arrisquei durante o jantar.
— 20 — ela respondeu olhando para o prato.
— É uma casa boa?
— Não — Júlia sussurrou com os olhos fixos em mim. O que era aquilo neles? — Não temos nem um chocolatinho de sobremesa, hein? — Não consegui continuar com aqueles olhos me encarando.
Comemoramos nosso 6.º aniversário de casamento em um chalé no meio do mato. Usamos roupas de frio, dormimos ao lado de uma lareira, comemos fondue de chocolate e bebemos muito whisky. Há muito tempo não nos amávamos daquela forma. Rindo, perguntei qual era o problema da casa. Ela juntou as mãos na frente do rosto. Queime até que não sobre nenhum ínfimo pedaço dela. Júlia continuou com as mãos unidas e se ajoelhou. Queime, queime tudo. Acompanhei as horas naquela noite. Meu pescoço amanheceu rígido e dolorido.
Ensaiei visitar a casa por dois dias. No terceiro, peguei o endereço e as chaves na imobiliária. Fui sozinho e ardendo para descobrir algo. Tinha dois andares, ficava numa esquina. Azul desbotado, venezianas brancas descascadas, portão branco, largo e alto. Entrei pela garagem, escura e vazia. Mesmo tendo aberto as janelas da sala, não havia claridade e a sensação de sufocamento não passava. A cozinha era espaçosa, com azulejos no estilo português até o teto. Os armários eram cinza e caíam aos pedaços. Os banheiros estavam no mesmo estado.
Subi as escadas com as pernas amolecidas. A mesma sensação de sufocamento tomava o segundo andar. Cheguei a um quarto rosa. Teria sido o quarto de Júlia? Quando estava no corredor, mais escuro do que qualquer outra parte da casa, comecei a escutar um som constante. Entrei em mais um quarto rosa. Ou teria sido esse o seu? O som continuava. O último, o que devia ter sido o quarto dos pais dela, era imenso. O barulho era mais alto. Somente o guarda-roupa velho e inchado estava ali. Abri duas portas de uma vez para sentir um cheiro forte de umidade. Fechei essas portas e abri outras. Dei um pulo. Havia um banheiro ali dentro. O som era de água e vinha da torneira da banheira. Apertei, mas estava gasta e água continuava a sair. Uma pia grande com espelho e um vaso torto.
Desci as escadas, ainda havia um som, mas não era de água. Passos. Voltei para os quartos, não encontrei ninguém. Oi, no entanto, escutei alguém dizer. Saí do primeiro quarto rosa correndo. Quando cheguei nas escadas, uma porta bateu, o estrondo se espalhou pela casa. Desci os degraus apertando o corrimão. Na sala, vi algo passar. Não quis ver de novo. Saí correndo para a rua.
Minhas pernas sozinhas tinham dificuldade para me manter em pé. Vendo tudo duplo, fui cambaleando atrás de algo para me acalmar. Me deparei com uma lanchonete a um quarteirão da casa. Atrás do balcão, uma senhorinha simpática. Pedi suco de maracujá. Uns minutos depois, ela veio com um copo e perguntas.
— Primeira vez aqui? — Ela voltou para trás do balcão. — Espero que goste pra vir mais vezes. — Eu sorri. Ela secava copos. — Moro neste bairro há 35 anos, já vi cada coisa.
— Conheceu a família dona da casa azul da esquina? — perguntei tremendo.
— A casa dos Souza? — ela respondeu indo até a entrada e apontando para a casa.
— Essa mesma. Como os pais morreram?
— O pai ficou doente e morreu. Depois a mãe.
— Ah, achei que tinha sido acidente ou assassinato.
— A morte da menina que foi uma tragédia — ela disse balançando a cabeça.
— Que menina?
— A filha mais velha, Helena. Se matou dentro da casa, no quarto dela.
— Eles tinham a Júlia e a Helena?
— Isso, conhece a Júlia? Foi ela quem achou o corpo quando chegou da escola.
Eu estava falando com a senhorinha e depois estava na sala com a Júlia. Não sei como voltei. Não conseguia me colocar de pé e tinha febre. A Júlia cuidou de mim sem saber o que eu tinha feito ou o que eu sabia. Para ligar todos os pontos, eu a pressionei tentando quebrar-lhe o silêncio do esquecimento. Nunca mais falei sobre a casa, mas nunca mais vivi um dia sem pensar nela.